quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

FARELO DE PÃO - Adroaldo Barbosa

Há um cisco no chão
de minha cozinha
que parece ser
farelo de pão,
Mas, se está no chão
já não é farelo,
é cisco
porque está
no chão.
Esse cisco
não é um simples cisco
é um maldito
farelo que virou
cisco no chão,
um cisco
que me persegue
com olhos
de não-sei-quê
tentando atrair
minha
atenção.
Esse cisco
me incomoda
como incomoda
minha reação,
mas,
o maldito me persegue
mesmo estando
parado,
calado ali no chão.
Ninguém vê o desgraçado
porque é só um cisco,
um simples farelo
deixado no chão,
não representa
ameaça alguma,
mas,
me incomoda
e atrai minha atenção.
Nunca mais
será apenas
um cisco,
nunca mais
será
um farelo de pão!
Será
o que me tira o sono
e suja todo o meu chão.
Ninguém sabe
quem comeu
o pão!
http://abarbosajunior.wixsite.com/escritor-brasileiro

ALICE - Nil Kremer

 
Alice tem uma peça sem encaixe
lego, prego, parafuso
um descontínuo
desatino
febre ao acaso
.
Uma tachinha no calcanhar
uma anormal idade informal
inferno na língua
do mar estrelas
no céu da boca
.
De manhã após os delírios
diluídos em chá
de comigo ninguém pode
sai a regar o jardim de lagartas
que florirá em asas
e será morada para a joaninha
salva todo dia na água do chuveiro
.
Alice afaga leões (mais de um por dia)
e envolve-os em mantras da sorte
.
Ela fez um inventário
para cada otário um invento
que dissolva ecos
possivelmente danosos
.
À noite com conchas no ouvido
ela fecha os olhos bem forte
para que nenhum colírio perigo
penetre em suas pupilas da sorte
e cegue suas miragens

http://poemasdaestrada.blogspot.com.br/2015/10/nil-kremer.html

ANINHA E SUAS PEDRAS - Cora Coralina

Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

SEM TÍTULO - Ana Peluso

Momentum silêncio, ‘a revolução pelo silêncio
A volta do ‘quem perguntou
Tornar a falar sozinho
Mais uma vez
Retomar a palavra pássaro
do ar , água-fogo
da terra
Engolir palavra até
*
Não sei nada do seu mundo
e você sabe muito pouco do meu
Apesar de, aparentemente, respirarmos
*
Só a pele da distância nos separa
somos reféns da vida
a mesma que escamoteia os sonhos
e impede o voo da pedras
ou há dúvidas de que a pedra vive
triste condição a da pedra
para quem crê que liberdade é respiro
ninguém é livre em um mundo de sonhos
ninguém é livre ao acordar
ninguém é livre ao fingir que acordou
tanto o fingimento quanto os acordos
e os acordes
são meras representações cênicas
de uma melodia sem nome
que toma em cadência de origem desconhecida
passos até então também desconhecidos
somos soldados da vida
guardiões e a postos
quando é ela o sequestro
do que antes era nada
e só o nada é a liberdade
de se desenhar a única possibilidade
de novas formas de rendição
a tradição humana de pertencer
*
A flor que nasceu feia
mas flor
furou o asfalto
o tédio
o nojo
o ódio
a flor se perpetuou
proliferou-se pálida em maldição
mora no mundo e nas casas
nas coisas e nas pessoas
esfumaça-se no éter
perpassa a argamassa
carne
ossos
coração
mente
não ilude nem a um santo
e sem alarde
pétala ante pétala
faz-se objeto testemunho
anarquia do ódio de todos
http://anapeluso.tumblr.com/

ESSA GENTE - Adroaldo Barbosa




O caminho à frente
é cheio de carros,
cheio de gente
com cheiro de tabaco,
cheiro de lodo,
cheiro de mundo,
coberto de limo,
coberto de tudo.
No caminho
que tem cheiro de mato,
que tem cheiro de gente
que masca seu fumo,
que masca o futuro
e busca seu rumo,
que vira bagaço
e tropeça nos passos.
Encontro essa gente
e me cospem na cara
as coisas da vida,
as coisas do mundo,
de cabo a rabo e
do topo ao fundo,
me mostra quão altos
são todos os muros,
me estupra com uns `nãos`
sempre tão veementes,
me ensina com os tapas
a ser quase gente,
me chuta pros lados,
pra cima e pra baixo,
me mostra o futuro,
o passado e o indecente,
essa gente com bafo
de álcool e sem dentes,
que perde o rumo,
chafurda no lodo,
e,
mesmo assim,
segue em frente.